“Ainda estamos muito ligados à imagem do arquiteto-artista na sua torre de marfim, e eu penso que isso vai acabar. Vem aí uma nova disciplina.” Eduardo Souto de Moura
Basta um passeio pelas ruas. Empreendimentos cada vez mais pasteurizados em forma, com a mesma configuração de seus vizinhos, que reproduzem sistematicamente as soluções consagradas pelo mercado e que respeitam “protocolarmente” as leis de uso e ocupação da cidade. Podem ser eficazes em venda, mas o que dizer a respeito de sua qualidade, de prover excelência em habitação? E quanto aos seus usuários?
Cabem aqui três definições de usuário: a do morador, o da cidade e de ambos. Para qualquer um que seja, a relação entre qualidade arquitetônica e qualidade do meio urbano já se desgasta pelo pouco ou inexistente diálogo das divisas entre empreendimento e calçada, que em sua ampla maioria se instauram como verdadeiras barreiras físicas e visuais. No aspecto mais privativo, a monumentalidade, a felicidade do usuário e os artifícios em se propor simulacros da cidade espetáculo em condomínios verticais são as principais estratégias que alavancam as vendas, sendo a tônica em panfletos com imagens foto realistas. Entretanto, sentimentos são respostas individuais à percepção da realidade e fazem parte puramente do campo subjetivo, do intangível. Prever a felicidade, riqueza, qualidade ou outras coisas ao usuário é quase como dizer que somos iguais e temos as necessidades niveladas, uma percepção coletiva virtualmente idealizada. Estes argumentos de venda tornam-se ainda mais impróprios, quando se contrapõem à lógica primacial da arquitetura: a importância de se promover qualidade arquitetônica para se habitar ou trabalhar.
Promover qualidade arquitetônica implica decisões coesas e coerentes, tanto para o usuário quanto para a urbe: modulação estrutural adequada, racionalização construtiva, acessos generosos, metas ecoeficientes compatíveis – como o aproveitamento da luz natural -, previsão de mecanismos de controle da insolação excessiva, ventilação cruzada, configuração interna flexível capaz de se adaptar as novas necessidades do usuário, implantação contextualizada com a topografia do sítio e seu entorno imediato, gentileza urbana , entre outros inúmeros fatores. Ora, se hoje a venda é eficiente sem a aplicação de muitos destes parâmetros, como explicar que o consumidor final, o mesmo que é prejudicado pela baixa qualidade da arquitetura, aceite esta condição?
Em qualquer área de atuação comercial em que se tente atingir o máximo da divulgação em um menor tempo possível, a propaganda ainda é o melhor investimento. Sendo enganosa ou não, ela quase sempre envolve arquétipos relacionados à tentativa de emocionar e condicionar felicidade ao consumidor final. Mexer com sentimentos é estrategicamente eficaz para se vender. Muito mais do que explicações técnicas e racionais do produto, a estampa imagética é a principal ferramenta. No mercado imobiliário não seria diferente.
Compramos pensando no bem-estar, mas nos esquecemos de avaliar se o produto se encaixa em condições técnicas e construtivas favoráveis a isso. Se não for a única, será uma das principais formas para se alcançar qualidade, e por consequência, esse bem-estar. Mas na visão de um comprador, essa avaliação também é difícil, o que faz com que o mercado imobiliário abarque com facilidade tantos produtos de falsa estampa. “Compramos gato por lebre”, por exemplo, quando adquirimos uma suíte máster em que não cabe uma cama. E isto não se restringe somente às áreas úteis ou privativas. Áreas de lazer, espaços gourmet e fitness construídos em resquícios de áreas comuns, feitos só para constar, “agregam” ao valor de venda, mas, na prática, transformam-se em mais um custo de manutenção para o comprador. Tal constatação sugere um questionamento básico: se todos estes edifícios são projetados por arquitetos, qual a responsabilidade deles em relação a isso?
O protagonista:
Em um rápido retrospecto, vamos à escola da arquitetura. A famigerada expressão “a academia e o mercado não combinam” parece, ironicamente, se materializar numa verdade. De um modo geral, estudantes não se familiarizam com os custos das decisões construtivas, as legislações e o mercado imobiliário. Na maneira em que isso se conforma, recém-formados são lançados à práxis, exercendo quase sempre a mesma função, “suficiente” para o mercado e “mola mestra” do atual sistema de produção arquitetônica: o prestador de serviço.
É evidente que estes profissionais devem ser valorizados e têm a sua importância. Porém, com a ausência da pluralidade profissional, outros nichos não são explorados, sendo assim o modus operandi implica somente invisibilidade ao arquiteto.
Projetar é planejar e planejar é saber onde se quer chegar. Mas isso não é tudo, é necessário exercer uma posição crítica, estar mais envolvido e assumir outras responsabilidades. Contudo, é importante se emancipar dos bastidores, e passar a atuar na linha de frente. A sobrevir, será a vez então do profissional arquiteto determinar, com seu critério holístico e técnico, a arquitetura, a resgatar isso de outros profissionais que deveriam estar exercendo outras funções. E, assim, esta responsabilidade será novamente atribuída a quem deveria ser.
Ainda há solução. Antes que fique tarde demais, vamos lembrar que, além de desenhar, arquitetos podem também gerir e empreender.
Foto em destaque: Edifício Praça Municipal 47 – Arquitetura Nacional: racionalização coerente da fachada e seus elementos, forma e função.
por Daniel Cirne Sinnema, Daniel Carvalho, Haiko Cirne Sinnema, arquitetos sócio-fundadores da Incorporadora Três.